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À CONVERSA COM A CAVALEIRA SÓNIA MATIAS
À CONVERSA COM A CAVALEIRA SÓNIA MATIAS
18 de Junho de 2015

No dia em que completa 15 anos da tomada de alternativa como cavaleira profissional, o Forcadilhas e Toiros esteve à conversa com… a menina de Lisboa que tem vindo a singrar no mundo da tauromaquia, Sónia Matias.

Sem ascendência no mundo tauromáquico, Sónia Alexandra Alvelos Belga Matias, de 36 anos, natural de Lisboa, contra tudo e contra todos, seguiu o seu coração e  passo a passo atingiu o patamar de cavaleira profissional, tendo sido a primeira mulher a fazê-lo no nosso país.

Gratos pela amabilidade e disponibilidade com que fomos recebidos, na sua quinta em Samora Correia, deixamos aqui o testemunho deste À conversa com…  uma pequena grande mulher, sonhadora, alegre, apaixonada pelo que faz e que com mais ou menos dificuldades consegue o que quer.

Nome: Sónia Alexandra Alvelos Belga Matias

Idade: 36 Anos

Natural de Lisboa

Nacionalidade Portuguesa

FT - Cavaleira profissional

FT – Primeira mulher a tomar a alternativa, em Portugal. Como é que tudo começou?

SM – Fui sempre uma miúda apaixonada por cavalos, desde muito muito pequena. Não tinha grande contacto a nível taurino, porque não tinha familiares que tivessem ganadaria, que fossem empresários, nem sequer tinha instalações para ter cavalos. Comecei por montar a cavalo em cavalos de aluguer, na Costa da Caparica, como qualquer outra pessoa comum ou turista que quisesse alugar um cavalo e dar uma voltinha. A maior proximidade que eu tinha aos toiros era um primo, o Joaquim Vinagre, que era campino no Sr. António José da Veiga Teixeira e onde tive o privilégio, de pela primeira vez muito pequenina, talvez com uns seis anos, ver os toiros mais próximo e ver os campinos a cavalo.

Os meus pais eram aficionados assíduos do Campo Pequeno, não aqueles aficionados fanáticos que corriam Portugal e Espanha e eu habituei-me a ir com eles todas as quintas-feiras. Numa dessas noites no Campo Pequeno, com apenas 11 ou 12 anos, decidi que queria enveredar por esta profissão porque tudo me fascinava, o cavalo, o toiro, os trajes, o Passo doble, o público, todos os envolventes da festa brava, para mim, eram um fascínio tremendo. Sendo eu, uma menina de Lisboa, sem nada, é óbvio que na altura foi uma ideia um bocado absurda para toda a família.

Portanto tudo isto foi o suficiente para despertar esta minha paixão que não tem fim.

FT- Quando vestiu a casaca pela primeira vez, o que sentiu?

SM – Depois de tirarmos a prova de cavaleiro praticante, podemos vestir a casaca, não é só no dia da alternativa… foi um momento muito interessante. Embora, na altura, recordo-me de ter falado com a minha colega Ana Batista, que seria interessante as mulheres poderem vestir o traje curto mesmo tirando a alternativa, não foi possível. Tivemos mesmo de vestir a casaca e foi gratificante, interessante e uma das coisas que tinha idealizado era poder fazer a minha carreira aos poucos e passo a passo amadora, praticante e continuando a sonhar e a querer evoluir, profissionalizar-me. Senti-me uma pessoa muito feliz, senti-me elegante, a casaca é um traje lindíssimo, com uma riqueza absoluta, que nos faz quase sentir que vivemos no tempo dos reis, dos príncipes e das princesas.

FT – No dia da sua alternativa aconteceu alguma situação caricata, alguma coisa que recorde com especial carinho?

SM – Todos os momentos, o dia da alternativa é um dia tão especial na nossa vida, que eu acho que ainda consigo sentir o cheiro das flores que me ofereceram. É impressionante conseguirmos recordar certas coisas tão intensamente. Eu estava muito ansiosa, não só pelo facto, mas também pela responsabilidade de ser a primeira, o que até essa altura não me tinha apercebido. O meu objectivo não era ser primeira, terceira ou última, mas sim ser uma profissional e uma boa profissional e quando me apercebi disse: “Olha, consegui, eu sabia que conseguia, mas afinal estou mesmo aqui a viver este momento que durante alguns anos foi tão questionado”. Foi um momento fantástico. Gostava de ter tirado a alternativa no Campo Pequeno, porque nasci em Lisboa e gostava de o ter feito na minha terra, mas não foi possível por a praça estar em obras. Acabei por tirar a alternativa em Santarém no dia 18 de Junho de 2000 na XVII grande corrida da Rádio Renascença. Tive um cartel com muitas figuras do toureio, a ganadaria era boa, os forcados igualmente. Vesti a casaca que idealizei, uma casaca de veludo azul bordada a prata e recebi “n” flores azuis.

O toiro que me saiu em praça não foi o mais fácil, mas solucionei o problema e foi das tardes mais felizes da minha vida.

FT - Qual foi o cartel nesse dia?

SM – O cartel foi, como padrinho o cavaleiro João Moura, Rui Salvador, Joaquim Bastinhas, José Manuel Duarte, Luís Rouxinol, António Telles e eu.

FT – Sónia, tem uma particularidade muito interessante, quase toda a sua família trabalha consigo, fazem parte de todo o seu sucesso…

SM – É mesmo. É giro porque ninguém da minha família estava neste meio e eu consegui “arrastá-los” (no bom sentido), porque eu não os obriguei. Eles começaram a vir aos poucos e quando dei por mim disse: “Isto está fantástico”. Tenho o meu pai como empresário e apoderado, o meu irmão acompanha sempre os cavalos e está aqui, a minha irmã era moça de espadas (parou agora porque teve um bebé), o meu primo é o camionista e já tenho alguns membros bastante importantes da família, havendo outros nos “bastidores”, também importantes. Sou uma privilegiada, pois quando temos os membros da família a apoiar, as coisas são feitas com muito carinho e é como estarmos a trabalhar todos para a mesma casa, fazendo com que tudo resulte da melhor maneira.

FT – O facto de a sua ascendência não ter a ver com o mundo dos toiros, sentiu mais dificuldade a entrar nele?

SM – Sem dúvida, qualquer pessoa que não tenha já alicerces, família, cunhas, o que seja, é muito difícil entrar em qualquer área. Além disso era uma profissão machista, havia colegas meus que não queriam tourear comigo por ser mulher, por considerarem ser uma profissão para homens e também por medo de acontecer alguma coisa pela própria fragilidade da mulher.

FT – Quantas horas treina por dia?

SM – Eu não tenho horas. Às vezes esqueço-me que existem horas no dia. Geralmente chego de manhazinha aos cavalos, estou cá às 8.30 ou 9 horas, monto a cavalo até à hora de almoço e regresso até ser noite. Há sempre trabalho a fazer e eu gosto de fazer tudo, entrançar, meter fitas, aparelhar, etc. Folga-se ao domingo quando não há corrida ou quando não vou com meninos saltar obstáculos.

FT – É fantástico uma pessoa fazer aquilo que ama. Para além disso tem algum passatempo? Tempos livres?  

SM – Quando dá, adoro teatro, gosto de ir ao cinema, gosto muito de convívio, gosto de estar com amigos a falar, a comer caracóis, também gosto de praia, principalmente de ir ver o mar e gosto muito de me mimar.

FT – Licenciou-se em gestão do ambiente. O que seria se não fosse cavaleira?

SM – Se não fosse cavaleira, seria veterinária. Só não enveredei por essa área porque era necessário ter umas médias altas e como a minha preocupação era cavalos, tive de optar por um curso bastante interessante mas mais flexível. Queria viver mais esta profissão, segui o meu coração e acho que fiz bem.

FT – Encontra diferenças entre o toureio de um homem e o de uma mulher?  

SM – Há… a voz… Essa pergunta é interessante. Acho que não pode haver muita diferença, porque por um lado o toiro não sabe distinguir se é um homem ou uma mulher e por outro o que conta não é a força exterior, mas sim a interior.

FT – Como é o toureio da Sónia?

SM – Acho que faço um toureio arrojado, um toureio com muito sentimento. Desde miúda que transmito muito para o público, vibro muito porque sempre me empreguei ao máximo, tornando o meu toureio intenso e frontal. Não alívio a sorte e arrisco igual aos homens, vibro eu acima de tudo e transmito esse vibrar ao público porque faço aquilo que me faz sentir feliz, não copiando nenhum toureio.

FT – Permitiu-se desenvolver a sua própria arte. O que gosta de apreciar nos outros toureiros?

SM – Tudo. Adoro ver corridas de toiros, vibro com os pormenores, um recorte no toiro, um gesto da mão, o próprio sorriso, uma expressão desagradada. São os, pequenos, pormenores que me dão grande satisfação, porque há coisas mínimas que as pessoas não reparam e que são capazes de dizer tudo.

FT – Alguma inspiração? Algum ídolo?

SM – Eu gosto de todos os toureiros. Agora estou numa fase complicada da minha vida porque já misturo o sentimento, a amizade com o resto… Sempre gostei muito do Moura, do Bastinhas, dos Teles, talvez porque era com quem eu tinha uma maior proximidade.

FT – Gostava de partilhar cartel com alguém com quem ainda não o tenha feito?

SM – Felizmente, acho que já partilhei cartel com todos os toureiros a nível nacional, a nível internacional já partilhei com grandes figuras do toureio em Espanha como por exemplo com o Pablo, Diego, Leonard Hernandez, Cartagena.

FT – No que toca a lides, com quem gostava de partilhar uma lide?

SM – Já toureei várias vezes a duo. Quando não há muita comunicação pode originar um choque entre colegas, mas desde que essa comunicação exista, por exemplo através de gestos, e haja movimento, é sempre bem partilhada com qualquer colega.

FT – Sónia, faça-nos um cartel com seis mulheres.

SM – Ora, então, vamos fazer uma coisa diversificada… de Portugal, eu e a Ana Batista, a francesa Lea Vicens, a espanhola Noélia Mota, a mexicana Mónica Serrano e uma portuguesa mais nova, a Ana Rita. Nós, em Portugal, também conseguiríamos fazer uma corrida, teríamos eu, a Ana Batista, a Joana Andrade, a Ana Rita, a Cláudia Almeida, a Andreia Oliveira, a Verónica Cabaço, a Mara Pimenta.

FT – Qual o seu sentimento em relação aos forcados?

SM – Ai, matam-me do coração. Eu sofro muito com os forcados, tenho muito carinho e respeito por eles e uma enorme preocupação. São os colegas por quem estamos sempre a zelar e a rezar para que nada de mal lhes aconteça.

FT – E a festa sem eles faz sentido?

SM – Não, nenhum. Em Portugal, a festa sem o forcado não faz sentido nenhum.

FT – Há alguma praça onde sonhe actuar? Estados Unidos, Venezuela?

SM – Gostava de ir ao México. Claro que há praças em Espanha onde eu gostava de tourear, mas não sei porquê sempre quis ir tourear ao México. Sou fascinada pelo público latino, é um povo super caloroso, super religioso, não há palavras. Eu toureei na Venezuela, choveu do início ao fim da corrida e nem uma pessoa se levantou. Fui a primeira mulher que lá toureou e presenciei uma procissão em que todas as pessoas tinham vela e cantavam. Foi um momento muito lindo.

FT – Em Espanha, o facto de as touradas serem o toiro de morte, o que sente com isso?

SM – Eu já fiz algumas touradas em Espanha com os toiros de morte e não vou dizer que gosto de ir a Espanha porque é toiros de morte, não. Eu vou tourear a Espanha, sei que aquele é o procedimento da corrida e tenho de estar dentro dos parâmetros da corrida à espanhola e ser profissional.  

FT – Mudando de polos, as corridas nos Estados Unidos, em que não há sangue no toiro…

SM – Dois pontos completamente distintos, eu acredito que foi a maneira que as comunidades portuguesas conseguiram para introduzir lá as corridas, de modo a transmitir a nossa arte e manter enraizados, nos seus descendentes, a sua tradição e paixão.

FT – Seja com velcro, seja toiros de morte, seja uma tourada à portuguesa há uma sensação que é comum a todas. Qual é a sensação de ver o toiro a sair dos curros? Consegue descrever?

SM – É uma expectativa grande. Quando estamos há espera que o toiro saia, estamos há espera que saia para mostrar algum comportamento. É a expectativa de como é que o toiro vai sair. Eu gosto muito de ir ao sorteio pelo que para mim não é um impacto grande o toiro que me sai em sorte.

FT – Quais são as características de um toiro para ter em praça consigo?

SM – Eu gosto de toiros bravos, de toiro que dêem luta, que transmitem e que andem. Os meus bandarilheiros dizem-me que eu ando melhor quando há toiros que me impõem perigo.

FT - Alguma ganadaria especial?

SM – A perfeita não existe e neste momento não há nenhuma ganadaria em especial. O que eu tenho sentido nos últimos tempos, é que da ganadaria de onde vamos a contar haver o melhor exemplar, não acontece e a ganadaria de que não levávamos nenhuma esperança é a que sai melhor.

FT – 2015 é um ano especial?

SM – Sim, quinze anos. Não tenho nenhum festejo especial. Vou é tentar viver cada tarde e cada noite recordando estes quinze anos com o máximo de profissionalismo e espero cá estar mais quinze anos. Talvez nos trinta faça uma grande festa.

FT – Balanço destes quinze anos?

SM – Quinze anos muito felizes, com muitas lágrimas pelo caminho, viveu-se tudo muito intensamente. Foram tardes de muita alegria, tardes de fracassos, momentos de tristeza mas nunca de desmotivação, lesões, perdas de cavalos, mas acima de tudo recordo-me dos triunfos e dos bons e grandes momentos.

FT – Época de 2015, a sua quadra tem alguma novidade?

SM – Adquiri um cavalo novo, que é o Monforte2. Dois, porquê? Porque eu já tinha um Monforte1 que usava de bandarilhas, pensei em mudar-lhe o nome, mas não consegui, tendo ficado o Monforte2. Tenho ainda alguns cavalos que poderei eventualmente estreá-los no fim da época.  

FT – Muitas corridas agendadas para este ano? Dentro e fora de Portugal?

SM – Algumas, por enquanto só por cá. Estamos a ver a hipótese de ir ao Canadá no próximo ano e entretanto os convites também vão surgindo.

FT – O que sente quando entra em praça e vê as bancadas mais pró vazias do que pró cheias?

SM – Uma tristeza muito grande, não pelo facto de não haver aficionados, mas sim pela situação económica que vivemos, que não permite às pessoas gastarem dinheiro em bens supérfluos como é o caso dos espectáculos.  

FT – O que acha que poderia ser feito para chamar ou atrair mais gente às praças?

SM – O grande problema não é o chamar as pessoas, porque as pessoas querem vir. Em praças que consigam que haja uma redução no valor dos bilhetes e que torne a corrida sustentável, é possível ter mais gente nas corridas. Continuam a existir cartéis excelentes mas que continuam a não encher as praças.

FT – Como é que a Sónia lida com o público?

SM – Isso é o mais fácil. Acima de tudo respeitar o público. Eu tenho um grande respeito pelo público e tenho noção de quando faço asneira. É ele que paga o bilhete, é ele que nos vê e merece o mesmo respeito e empenho do cavaleiro, tanto o público da “Santa Terrinha” como o público do Campo Pequeno. É-me impensável desvalorizar uma praça desmontável de uma praça fixa de primeira.

FT – Ao longo destes quinze anos, muitos troféus, muitos prémios, o que sente a olhar para eles?

SM – Eu gostava de ter recebido mais… ainda por cima quando são aqueles mais bonitos, passam-me todos ao lado. Tenho prémios muito interessantes, por exemplo uma garrafa que não deixo abrir por ser um troféu. O meu grande troféu são os aplausos do público.

FT – Quem é a Sónia Matias?

SM – A Sónia é uma mulher determinada em conseguir o que sempre sonhou, que não tem medo de arriscar, que quando algo lhe corre mal levanta a cabeça e aparece duas vezes mais forte, amiga, sincera.

NUMA PALAVRA:

A sua melhor lide: Alcochete

Um cavaleiro(a): Sónia Matias

Uma ganadaria: Coimbra

Um Forcado: Miguel Vinagre (primo)

Um toureiro: João Moura

Um bandarilheiro: José Russiano e Ricardo Pedro

Uma praça: Campo Pequeno

Um cavalo: Bombita, que foi o cavalo da minha vida

Um colega: Joaquim Bastinhas

Um clube: Benfica

Um jogador: Eusébio

Um filme: E.T.

Um destino de férias: Hawaii

Um país: México

Uma cidade: Lisboa

Praia ou campo: Campo

Comida favorita: Batatas fritas (não comia há 8 anos) e migas de espargos

Um sonho: Reforçando, ir ao México e uma realidade da vida, SER FELIZ

Uma palavra/sugestão para o Forcadilhas e Toiros.

Acima de tudo continuem assim, a festa precisa de pessoas que vejam a parte boa da festa e não a parte má. Precisamos que se sinta a paixão pelo que fazemos e nós vemos isso através das vossas fotografias.

 

 

Entrevista: Inês vitorino

Fotografias: Armando Alves

Composição: Célia Doroana